Série Cerveja e Saúde – Verdades e Mitos
Por Dr. Pedro Veronese, médico, beer sommelier e mestre em estilos cervejeiros
No dia 09/11/2017 vários sites nacionais de notícias divulgaram a seguinte matéria:
Oncologistas pedem diminuição do consumo de álcool para evitar câncer
Uma das sociedades de oncologia mais influentes do mundo, a ASCO, exorta médicos a orientarem sobre os efeitos negativos que o consumo tem sobre a doença.
A ASCO, que é a Sociedade Americana de Oncologia Clínica, emitiu um documento no dia 07/11/2017 solicitando que os médicos orientem seus pacientes a reduzirem o consumo de álcool.1
Até ai nenhuma novidade, pois se sabe, há muito tempo, que o consumo pesado ou abusivo de álcool é um fator de risco comprovado para câncer. Isto é tão verdade, que a Agência Internacional de Pesquisas em Câncer classifica o álcool como substância carcinogênica ao ser humano (sabidamente causadora de câncer).
*As evidências de que o consumo pesado ou abusivo de álcool causam câncer é indiscutível, mas já temos esses mesmos indícios para o consumo leve a moderado? Frente a um tema tão polêmico, lá fui eu avaliar os dados científicos de forma minuciosa para trazer um olhar real e honesto da situação.
Esta afirmação sobre o consumo leve a moderado de álcool da sociedade americana é baseada num estudo de meta análise publicado em 2015.4 Mas o que é um estudo de meta análise? É um tipo de estudo científico onde o pesquisador junta uma série de trabalhos sobre o tema para tentar tirar uma conclusão mais robusta. Então vamos lá. Um total de 572 estudos foram avaliados, incluindo 486.538 casos de câncer.
Como podem ver são milhares de pessoas avaliadas no mundo todo. E o que eles acharam?
Vinte e três tipos de câncer foram avaliados: boca e faringe, carcinoma de esôfago, adenocarcinoma de esôfago, estômago, intestino delgado, colorretal (intestino grosso), fígado, vesícula, pâncreas, laringe, pulmão, melanoma, mama, colo de útero, endométrio, ovário, próstata, bexiga, rim, tireóide, cérebro, linfoma de Hodgkin e não Hodgkin. Como podem ver, câncer não é uma doença única, cada tipo tem suas particularidades.
Em dezessete dos vinte e três tipos de câncer analisados, o consumo leve a moderado de álcool NÃO aumentou o risco de câncer. Isso mesmo. Foi negativo! Em quatro tipos de câncer, o consumo moderado de álcool (para cerveja considera-se duas latinhas de cerveja para homem e uma para mulher/dia) aumentou o risco de câncer, a saber: boca e faringe, colorretal, laringe e melanoma.
E em dois tipos de câncer, mesmo o consumo leve de álcool (para cerveja considera-se no máximo uma latinha por dia) aumentou o risco de câncer, a saber: carcinoma de esôfago e câncer de mama.
E agora, como devemos nos comportar? Gostaria de destacar alguns pontos importantes.
A maioria dos órgãos de câncer no mundo reconhecem que o consumo pesado ou abusivo de álcool causa câncer. Como já falei anteriormente, isso está fora de discussão.
Porém, ainda existem dúvidas sobre o consumo moderado, tanto que, veja como outros órgãos tão renomados quanto a Sociedade Americana de Oncologia Clínica se posicionam: a Associação Americana do Coração (AHA), a Sociedade Americana de Câncer, o Departamento Americano de Saúde e Serviços Humanos e o Instituto Americano de Pesquisas em Câncer recomendam que homens não bebam mais que um a dois drinks por dia e mulheres não bebam mais que um drink por dia. Veja que eles não condenam o uso moderado de álcool.
E por que existe essa dúvida?
Porque essa relação entre consumo leve a moderado de álcool e câncer foi avaliada em estudos epidemiológicos (caso controle e coortes). Mas o que isso significa?
Esses tipos de estudos científicos, que são importantes e corretos, podem apresentar alguns problemas e portanto, podem não trazer respostas DEFINITIVAS sobre um determinado tema.
Daria para explicar melhor? Vamos lá!
Imagine que eu acompanhe um grupo de pacientes com câncer de pulmão e um grupo de pacientes muito semelhante, mas sem câncer de pulmão. Em uma avaliação dessas duas populações, eu percebo que no grupo câncer de pulmão há muito mais pessoas que bebem. Então eu posso levantar essa associação: beber predispõe a câncer!
Porém, é sabido que pessoas que bebem mais, fumam mais cigarros e portanto, essa associação pode ser explicada pelo tabaco e não pelo álcool. A isso, damos o nome de fator de confusão. É claro que por meio de métodos estatísticos, os pesquisadores tentam corrigir estes fatores de confusão, porém é muito difícil conseguir eliminá-los completamente.
Outra questão importante é que esses estudos não avaliaram apenas cerveja, e sim, bebidas em geral. Desta forma, não temos uma informação específica para cerveja. Outro problema desses estudos de meta análise é que eles avaliam trabalhos muito diferentes entre si, portanto o que um pesquisador definiu como consumo moderado na pesquisa A difere do que foi definido na pesquisa B. Também sabemos que é mais fácil publicar um estudo que tenha mostrado associação entre álcool e câncer do que um estudo negativo para esta associação.
Chamamos isso de viés de publicação. Outra ponto importante é que sabemos que os indivíduos tendem a relatar nas pesquisas uma dose menor de álcool do que realmente ingerem. É que nem o fumante que traga 1 maço de cigarro por dia, mas quando você o interroga ele fala: “não, eu não fumo mais que 10 cigarros por dia”…..isso é extremamente comum.
Será que o que se chamou de consumo moderado nos trabalhos realmente foi consumo moderado?
Vejam que podemos enumerar dezenas de fatores, por isso que os ensaios clínicos radomizados controlados são o melhor desenho de estudo para se tentar produzir evidências mais definitivas, pois eles conseguem eliminar (ou pelo menos reduzir) esses “erros” ou “fatores de confusão” acima.
As evidências de que o consumo leve a moderado de álcool possam causar câncer ainda não são definitivas, tanto que a ASCO não pede para que as pessoas parem de beber, mas sim reduzam o consumo. Noelle K. LoConte, uma das autoras do documento da sociedade americana, compara o uso de álcool com exposição solar.
Da mesma forma que o sol está intimamente relacionado ao câncer de pele, ele é importante para síntese de vitamina D, portanto a redução na exposição, inclusive com uso de protetor solar, é recomendada para se diminuir o risco de câncer de pele. Poderíamos fazer um raciocínio semelhante com o álcool, que apresenta outros fatores positivos para a saúde cardiovascular.
Pedro, agora que já avaliamos todos os dados, qual é a sua conclusão?
Vou expor minha opinião sem ficar em cima do muro. Sou apaixonado por cervejas, mas sou médico e portanto, tenho especial preocupação com a saúde das pessoas.
Concluo ressaltando que dos vinte e três tipos de câncer analisados, em dezessete deles não foi encontrado nenhuma associação com o consumo moderado de álcool. Para quatro deles: boca e faringe, colorretal, laringe e melanoma o consumo leve de até um drink por dia não mostrou nenhuma associação. E em outros dois: carcinoma de esôfago e mama, mesmo o consumo leve pareceu estar associado.
Portanto, se você tem um histórico pessoal ou familiar para esses tipos de câncer converse com seu médico. Mas se quisermos falar como realmente prevenir essas doenças eu recomendo: câncer de boca, faringe, laringe e esôfado têm uma associação muito mais forte com excesso de álcool, tabaco e HPV (um tipo de vírus). Evite esses fatores.
O câncer colorretal pode ser prevenido por meio de colonoscopias regulares a partir dos 50 anos de idade. O melanoma tem um componente genêtico importante e a proteção solar é a medida mais eficaz na sua prevenção. Se pintas suspeitas aparecerem procure o seu dermatologista. O câncer de mama pode ser diagnosticado precocemente por meio da mamografia anual, com altíssimas chances de cura.
No mais, minha orientação é: beba menos, beba com qualidade, adote hábitos saudáveis de vida, faça prevenção com seu médico e seja feliz!
Referências:
1. https://www.asco.org/advocacy-policy/asco-in-action/alcohol-statement-asco-cites-evidence-and-calls-for-reduced-alcohol-consumption.
2. https://www.iarc.fr/
3. *J Clin Oncol. 2017 Nov 7:JCO2017761155. doi: 10.1200/JCO.2017.76.1155. [Epub ahead of print]
4. Br J Cancer. 2015 Feb 3; 112(3): 580–593.
5. Ann Oncol. 2013 Feb;24(2):301-8. doi: 10.1093/annonc/mds337. Epub 2012 Aug 21.
Fonte: Instituto da Cerveja